Lá na escola, a professora ajuda os grupinhos a terminarem o joguinho de formar palavras, enquanto a tia ajuda os pequenos a empilhar potinhos. Nas duas salas surge a mesma pergunta: Quando é que a gente vai brincar?
Oras, mas não é isso o que estavam fazendo? Respondo: sim e não.
Muitas escolas adotam o velho discurso de que “aqui a criança aprende brincando”. O que não é uma inverdade. Criar situações para os pequenos vivenciar determinado “conteúdo” é primordial, uma vez que o pensamento abstrato, organizado só vem lá pelos 8, 10 anos. Enquanto isso, de nada adianta o blablablá do professor se não houver uma experimentação do que está sendo ensinado, de forma bem concreta, em que os alunos possam ver, sentir, ouvir, tocar. É preciso brincar, imitar, copiar, recriar. Nessa fase a brincadeira não passa de um treino para as atividades que estarão por vir.
Por exemplo, para aprender a formar palavras, a criança usa um joguinho em que, se juntando as sílabas corretas surge uma figura. Ou, para aprender a engatinhar, a criança fica de bruços e um brinquedo é colocado à sua frente para que ela se esforce ao máximo a fim de alcançá-lo.

As escolinhas estão repletas de joguinhos e brinquedos, didáticos e comerciais, que enchem os olhos de pais e filhos. Muitas opções, inúmeras atividades desenvolvidas para estimular a coordenação motora, o raciocínio, a memória, o ritmo, a noção de tempo e espaço. A impressão que se tem é de que as crianças vão adorar aprender desse jeito. E, sim, elas gostam, mas elas também sentem falta do livre brincar.
Ao lado de tantos brinquedos deveriam estar caixas de papelão, embalagens vazias, cordões, jornais, potes e tantas outras coisas que podem se transformar em o que a criança desejar. Quem nunca vivenciou isto em casa: a caixa cheia de brinquedos das mais renomadas marcas enquanto a criança se diverte mesmo com a caixa de papelão e a fita do embrulho. É esse brincar que desenvolve a criatividade, a busca de solução para problemas, a superação de desafios, o desejo, o transformar. Essa fantasia é essencial na infância: os contos de fada, o papai-noel, o coelho da páscoa, o bicho-papão. Freud já dizia que é a fantasia que nos leva à busca do prazer, da satisfação por meio da ilusão. É o faz-de-conta que ensina à criança a diferença entre o real e o imaginário.
E em casa o padrão é o mesmo: os pais recorrem aos brinquedos estruturados (os que são vendidos em lojas) com apelos que para mim já viraram comerciais: estimula a coordenação motora, desenvolve o raciocínio. Ora, toda brincadeira faz isso! As tampas da panela, a água da mangueira, o seu guarda-roupa. E nem é preciso a intervenção de um adulto o tempo todo para que haja brincadeira: as crianças sabem inventar suas próprias atividade. Acontece é que elas estão tão acostumadas a serem guiadas durante as brincadeiras que, muitas vezes, elas acabam perguntando o que é para ser feito.
Certa vez estava avaliando um menino de 6 aninhos. Deixei-o à vontade num tapete com alguns brinquedos (estruturados e não-estruturados) e disse que poderia fazer o que quisesse naquele dia. Ele ficou com um ar perdido e me perguntou: “o que é para fazer?”. Certamente as dificuldades pelas quais aquele garotinho passava estavam ligadas a essa falta de criatividade.
O livre brincar da criança foi deixado de lado. Brincadeira dirigida na escola, brincadeira dirigida em casa. E ainda enchemos nossos pequenos de atividades, deixando a agenda de seres tão pequenos parecida com a de um adulto cheio de responsabilidades: escola, natação, inglês, judo, ballet, futebol, salão de beleza, terapia (aliás, se não fosse essa agenda atribulada não havia porque terapia, não é mesmo?). É preciso deixar a brincadeira correr livre, se transformar. É preciso deixar a criança se divertir com objetos inesperados para que sejam capazes de inventar uma brincadeira (e eles são!). É preciso que eles construam seus brinquedos. É preciso que as crianças fantasiem a brincadeira à sua própria maneira. Lembro-me que um simples pega-pega entre vizinhos virava um polícia e ladrão, que virava esconde-esconde, que virava uma outra brincadeira qualquer que tínhamos acabado de inventar.
Creio que formar cidadãos com base apenas nessas brincadeiras dirigidas seja algo pouco proveitoso. Estaremos formando indivíduos altamente capazes em desempenhar funções mecânicas, sem um pingo de tato com o outro, sem criatividade. Cidadãos quase robôs, estressados com a rotina do dia-a-dia, que não sabem se desligar do cotidiano e viajar numa brincadeira com os filhos, nas linhas de um livro ou deitar numa rede e imaginar estar relaxando à beira-mar.
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daqui.